Capítulo III
Milagres subversivos. Se os historiadores e arqueólogos estão conseguindo reconstituir o ambiente físico em que Jesus viveu e até têm bons palpites sobre a veracidade de certas passagens da sua vida, tudo muda da água para o vinho quando o assunto são os milagres. Afinal, como um pesquisador pode estudar objetivamente feitos considerados sobrenaturais?
Uma moda no passado (que até hoje tem muitos adeptos nos Estados Unidos) foi a tentativa de explicar a origem de alguns desses fenômenos como tendo causas naturais. Você provavelmente conhece algumas dessas teses: a estrela de Davi no nascimento de Jesus era na verdade o cometa Halley, Lázaro foi ressuscitado por Cristo porque estava em coma, não havia morrido biologicamente...
"Explicações desse tipo conseguem às vezes ser mais absurdas do que o próprio milagre", diz André Chevitarese. Para ele, em vez de querer esclarecer racionalmente esses fenômenos, o historiador deve manter a mente aberta para entender como as comunidades da época encaravam esses feitos, estudando, por exemplo, qual a noção que se tinha então da doença e da cura.
Os pesquisadores sabem que no tempo de Jesus a doença estava associada à impureza. "A grande preocupação da lei judaica, já prevista em textos como o Levítico, era demarcar o que é puro e o que não é puro", diz o professor Manuel Fernando Queiroz dos Santos Júnior, da Faculdade de Saúde Pública da USP. "E as doenças de pele, as mais visíveis, logo eram associadas à impureza espiritual." Especialista em hanseníase, o professor diz que o que a Bíblia chama de lepra servia para nomear, na verdade, todas as doenças de pele na época, de eczemas a micoses. "Traduzir a palavra sara'at na Bíblia para o termo lepra ou hanseníase é errado", diz o professor. "Quem lê a Bíblia sem atentar para esse detalhe tem a impressão errônea de que existia uma verdadeira epidemia da doença na época de Jesus." O pior é que, graças a esse erro, os leprosos foram segregados por centenas de anos como portadores de uma doença impura.
Segundo os historiadores, essa associação perversa entre doença e impureza (ou pecado) terminava favorecendo a elite judaica do Templo de Jerusalém. "Afinal, para se curar, o doente tinha que pagar mais taxas e oferecer mais sacrifícios no templo", diz Crossan. "Isso gerava para o doente um ciclo interminável de sofrimento e dívidas." O templo era comandado por uma casta sacerdotal que detinha o monopólio de conduzir os fiéis aos rituais de purificação - que, na época, incluíam o sacrifício de animais como cordeiros (quem não tinha posses para tanto, podia sacrificar uma pomba branca comprada no mercado do templo).
Imagine agora o mal-estar que os sacerdotes deviam sentir ao ouvir relatos de que, com um simples toque, um judeu pobre da Galiléia andava curando doentes, declarando, com esse gesto, que a pessoa estava livre dos pecados. "Hoje é difícil de entender como um ato desses era radicalmente subversivo", diz Richard Horsley. Ele diz que Jesus não estava só. "Uma série de outros curandeiros também usavam esse ritual para desafiar o poder do templo naquela época", diz o historiador.
Como Jesus conseguia curar as pessoas? Poucos pesquisadores se arriscam a dar palpites. O certo é que, ao se misturar com doentes, mendigos, gentis, prostitutas, enfim, toda classe de pessoas consideradas impuras, Jesus conseguiu incomodar a maioria dos grupos judaicos da época. Entre esses incomodados, se incluíam os fariseus, membros de uma escola religiosa que insistia na completa separação entre os judeus e os gentios (fariseu quer dizer "o que está separado"). Eram provavelmente hostis a Jesus e não deviam entender por que ele comia na mesma mesa dos "impuros" - se você leu os evangelhos, deve ter notado como os primeiros cristãos retratam os fariseus de forma pouco lisonjeira. Jesus provavelmente também não agradou saduceus, pequeno grupo judeu que não acreditava na imortalidade da alma nem nos anjos, muito menos nos milagres de Jesus. "Seu estilo de ensinar e de viver desagradou muitos judeus, que o colocaram à margem do judaísmo palestino", diz o padre e historiador John P. Meier, no seu livro Um Judeu Marginal. "Mesmo sendo um galileu rústico que nunca freqüentou uma escola de escribas, ele ousou desafiar as doutrinas da época", diz Meier.
A escolaridade é outro ponto polêmico sobre a vida de Jesus - já que, para muitos historiadores, ele provavelmente era analfabeto. "Somente uma ínfima parcela da população que trabalhava para os governantes sabia ler e escrever", diz Richard Horsley. "Não acredito que ele fizesse parte dessa parcela." Então, como explicar o trecho do evangelho que o retrata lendo numa sinagoga? "A palavra ler no evangelho pode significar recitar", diz Horsley. "O fato de Jesus não saber ler nem escrever não significa que ele não conhecesse os textos e as tradições judaicas." Juan Arias, correspondente do jornal El País no Brasil e autor do livro Jesus, Esse Grande Desconhecido, discorda. "Apesar de ter vindo de uma família muito pobre, é difícil imaginar que as discussões polêmicas que ele teve com seus contemporâneos relatadas nos evangelhos possam ter sido feitas por um homem que não sabia ler", diz Arias.
Mesmo que não tenha sido analfabeto, o judeu pobre da Galiléia não deve ter chamado a atenção da elite intelectual da época. A não ser, talvez, pelos tumultos que deve ter causado quando resolveu pregar diretamente em Jerusalém, chegando a derrubar barracas dos mercadores que comerciavam no templo. O resto da história você conhece: para os romanos, apenas mais um agitador crucificado, nada anormal em meio a centenas de outras crucificações. Para um punhado de seguidores, o símbolo de uma nova fé que mudaria o rumo da humanidade.
Paulo Braccini
enfim, é o que tem pra hoje...
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