Havia esperado durante todo o dia. O quê? nem ele próprio saberia dizer. Acordara já com a fatalidade da espera colocando um brilho triste nos olhos. E o projetara sobre a mãe, primeira pessoa a abraçá-lo, que recuou um pouco ofendida. O mesmo recuo sentira estender-se às outras pessoas, à medida em que o abraçavam e felicitavam. Examinara-se ansioso ao espelho, tentando descobrir se o ano a mais também lhe colocara uma ferocidade a mais ou um novo espanto no rosto. Mas não. Nada. Lá estavam as mesmas feições um pouco vagas, o ar exato de quem espera alguma coisa. E contudo, nesse dia, ele esperava mesmo. A espera abstrata cedera lugar à outra — concreta. Ajeitara o rosto da melhor maneira possível, como se o sentimento novo (e no entanto tão antigo) fosse algo a esconder. Porque ele não queria surpreender nem chocar nem ferir. Pertencia àquela estranha espécie de pessoas que flutuam pelo mundo, sutis, evitando esbarrar em qualquer coisa. Não se sabia se procedia assim por simples delicadeza ou para defender-se. O fato é que era assim. E, portanto, desagradava-lhe aquele jeito de espera gritando alto no corpo inteiro.
Com alguma sofreguidão libertou-se dos abraços, beijos e presentes de pai, mãe, irmãos e empregados — e partiu para a aula. Tomou o ônibus mais tranqüilizado. As pessoas, ali, não sabiam que estava de aniversário. Examinavam-no rápidas, reunindo no olhar as características para definir um estudante e passavam adiante, aliviadas por não precisarem deter-se. O alívio delas fundia-se com o alívio dele — e o ônibus arfava, num suspiro uníssono. Na aula cantaram o parabéns pra você nesta data querida etc. e ele agradeceu com um esbarrão na cadeira da frente e uma pisada no pé do colega ao lado. Para cúmulo da desgraça, era dia de aula de Inglês, e ele teve que suportar o “happy birthday to you” etc. Novo esbarrão, nova pisada. Esquivou-se a manhã toda, adivinhando um abraço em cada braço que se aproximava, felicitações em cada boca entreaberta. E não era pudor, não era timidez, não era sequer o seu antigo receio de chamar a atenção — era o desejo de não esperar porque ele sabia que não viria, fosse láo que fosse. Então, amargo, ele preferia cortar de início qualquer possibilidade de concretização da espera — porque ele sabia, com a lucidez insone dos que apenas pressentem, a possibilidade jamais se concretizaria. Mesmo assim, sucediam-se braços e abraços, bocas e palavras. Mas os corpos que os proferiam, os mais inteligentes, logo esbarravam com aquela frieza e se afastavam com a dignidade tardia dos recusados. Os mais burros insistiam, fazendo perguntas, protestos de amizade que somente conseguiam aumentar o espaço em branco que se instalara dentro dele.
E nesse espaço em branco ele colocara uma praça, um pôr-do-sol no Guaíba, uma rosa amarela, um canteiro de margaridas e uma fuga de Bach. Mas nem ele sabia. Colocara lentamente, nos dezenove anos em que fora vivendo, sem ligar muita importância a isso. Eram todas coisas leves, mas agora pesavam e o faziam transpirar, acendendo um cigarro e pensando que precisava abandonar o vício de fumar. Mas é provável que ele soubesse não estar o desconforto ligado ao fumo, e apenas dissimulado afastasse a perspectiva de sofrimento. Porque se ele pensasse, sofreria. E como qualquer ser humano que não é masoquista, ele não queria sofrer. Voltou para casa e suportou o quadragésimo nono parabéns pra você, à hora do almoço. Se houvesse um qüinquagésimo ele daria um grito, talvez solucionando tudo, então. Mas não houve. Os vagos parentes e os inexistentes amigos que apareceram à tarde mantiveram-se discretos no aperto de mão. E já dormindo, à noite, ele acordou. Por um instante permaneceu suspenso naquele segundo, como se estive esse tudo tão escuro que ele não pudesse distinguir a si próprio do resto da noite. Aos poucos foi tomando consciência da extensão do corpo, do travesseiro embaixo da cabeça, do livro em cima da mesa, do irmão roncando na cama ao lado. Deteve-se nele, espantando-se com sua falta de sutileza. O irmão era gordo, roncava e brigava, impondo-se sem o menor senso de decoro. Deus havia sido drástico em cada um deles, concluiu. Pois que ele era leve demais, esse o seu mal. Nesse instante invadiu-o uma enorme ternura por si mesmo. Estava fazendo dezenove anos e esperara o dia inteiro por uma coisa que não sabia o que era. Olhou pela janela e viu a lua presa dentro da noite enorme. E sentiu-se preso, também. Vontade de abandonar o corpo ali mesmo, no meio dos lençóis desfeitos, e sair correndo para outra esfera mais ampla. Esfera — espera, tão parecidos, pensou. E enlaçou os joelhos numa carícia, levantando meio corpo na cama. Procurou um rótulo para pacificar o sentimento, mas não o encontrou. Solidão, melancolia, angústia, fossa, depressão — tudo ficava infinitamente inferior àquela espera enorme. Inventariou a espera, descobrindo então aquela série de coisas dentro dela. Mas era ainda incompleta. Havia coisas mais no tempo, no vento, na noite — nele próprio. Levantou pisando devagar o chão de porquê. Caminhou até a cozinha e acendeu a luz. Sobre o armário, o relógio mostrava cinco minutos para a meia-noite. Abriu o refrigerador, retirou a torta que a mãe mandara fazer e que jazia, incompleta, sobre um prato novo. Cortou um pedaço grande, encheu um copo de guaraná. Mas fez isso em tão lentos gestos que quando ia começar a comer olhou o relógio e viu que já passara da meia-noite. Que não estava mais de aniversário. Então espiou para fora e, vendo a lua, descobriu que era a mesma que vira da janela do quarto. Apenas um pouco mais alta no céu.
Caio Fernando Abreu
Paulo Braccini
enfim, é o que tem pra hoje...
Uma pequena tranformação não significa uma grande mudança. As coisas seguem de acordo com que deve ser.
ResponderExcluirBjs.
com certeza, mas a obstinação com as mudanças possíveis já é um caminho para se chegar às grandes metas ...
ResponderExcluirbjux querido
;-)
és um cronista da atualidade!
ResponderExcluirparabéns pelos posts, sempre conceituais! e de extremo bom gosto.
Cristiano! Obrigado pela visita, pelo registro e pelos elogios ... agradeço mas não me julgo ser tanto assim ... enfim ...
ResponderExcluirbjux
;-)