sexta-feira, 28 de maio de 2010

Cartas




A Zaél Abreu

São Paulo, 15 de maio de 1980.

Querido pai,

Fazia tempo que queria escrever para o senhor, desde que voltei daí, no final de fevereiro. Acontece que foi uma correria danada, com o novo trabalho, a nova casa, a complicação toda com os documentos, a vinda de Simone — enfim, mil coisas me roubando tempo e disposição. Agora está tudo mais calmo. Já me adaptei ao trabalho, estou sozinho em casa. Tudo corre melhor, mais solto.

Fiquei um pouco preocupado com o senhor quando estive aí. E o senhor vai me permitir ser franco: tenho a impressão de que o senhor está levando uma vida muito amarga. Ficou na minha cabeça uma frase que o senhor disse logo ao voltar daquela viagem a Santiago, algo como “Eu já morri e não sei”. Ô pai, que é isso? Entendo — e mais profundamente do que o senhor possa imaginar — o quanto a mudança de Santiago para Porto Alegre, a reforma no quartel o abandono da Maçonaria devem ter agido dentro do senhor para que fosse acontecendo esse sentimento de distanciamento da vida. Mas acontece que o senhor não colocou outras coisas para substituir essas. E eu não entendo por quê. O senhor abandonou até mesmo a leitura, parou de ir ao cinema, de sair. Quer dizer, deliberadamente foi-se afastando de tudo. Num velho, eu até entenderia essa atitude. Mas o senhor não é um velho.

Imagino que existam razões fortes, ou complexas, dentro do senhor para provocar essa atitude. Mas há de concordar comigo que, fora do senhor, essas razões não existem. Tenho andado bastante por aí, conhecido muita gente e, honestamente, pouquíssimas vezes (ou quase nunca) encontrei uma família como a nossa. Unidos, amigos, solidários — com essa mãe fantástica que é a Dona Nair segurando a barra de todos. Amigos meus que os conhecem — como, por exemplo, o José Márcio — ficam muito impressionados, “Mas como” — eles dizem — “é que vocês conseguem se manter assim quando todas as famílias por aí estão desmoronando?” E eu não sei explicar. Acho que é uma questão de amor.

Fiquei preocupado também com a mãe, quando estive aí. Ela está cansada, pai. E muita seguração de barra. Há anos, meu Deus, ela só trabalha, sem descanso, quase sem diversão. Achei-a triste.

Mas não pense, por favor, que esta carta é para recriminá-lo por alguma coisa. Não se trata disso. Apenas gostaria de compreendê-lo melhor e, se possível, de ajudá-lo — como o senhor e a mãe me ajudaram (e ainda ajudam) durante muito tempo. Eu gostaria de convidá-lo para vir, com a mãe, passar um tempo comigo. Acho que julho é uma boa época, porque coincide com as férias da mãe e tal. A casinha é realmente ótima e, como estou sozinho agora (e por muito tempo), há bastante espaço. Tem dois quartos em cima, um deles seria de vocês, Por enquanto, ela está um pouco vazia. Como estou comprando o telefone (saiu 50 mil), este mês me sobrou pouquíssimo dinheiro. Mas acabo de pagá-lo no final de maio, portanto em junho ela deve estar pronta.

Fora a alegria que me dariam, acho que faria muito bem ao senhor sair um pouco. Tem tanta coisa aqui por cima, pai. São Paulo é uma cidade fascinante, cheia de vida. Depois, lembro que Tia Ninica ofereceu o apartamento dela, no Rio — vocês poderiam estender a viagem até lá — uma cidade linda demais. Pense nisso. Gostaria tanto que o senhor e a mãe conhecessem o lugar onde vivo. E não me venham com desculpas tipo “dinheiro”. A passagem de ônibus custa tanto quanto de Porto Alegre a Itaqui, e de avião pode ser feito um crediário que sai ainda mais barato. Eu não vejo problemas.

Talvez o senhor não tenha vontade de sair — mas será que não vale a pena um esforço? Às vezes a gente vai-se fechando dentro da própria cabeça, e tudo começa a parecer muito mais difícil do que realmente é. Eu acho que a gente não deve perder a curiosidade pelas coisas: há muitos lugares para serem vistos, muitas pessoas para serem conhecidas. Tudo isso estimula a gente, clareia a cabeça, refresca. Por que não?

Quanto a mim, acho que estou muito bem. Poucas vezes tenho me sentido assim. Pela primeira vez, estou comandando completamente a minha própria vida. Morar só é uma experiência fantástica. Tenho uma empregada ótima, Renilda, uma baiana flor de boa vida, mas muito bom caráter (e como isso é raro por aqui, o resto não importa muito). A casa tem um jardinzinho nos fundos, um pequeno pátio, que tenho cuidado muito, principalmente nos fins de semana. Terça-feira aconteceu uma coisa ótima. Como o senhor sabe, há quatro anos eu fazia psicoterapia. Primeiro aí, dois anos, com o Dr. Mário Bertoni, que morreu naquele desastre. Depois continuei aqui, em grupo. E há alguns meses eu vinha pensando em parar. Não sentia mais grandes problemas para discutir. Nesse tempo todo, aprendi a me conhecer, a conviver comigo mesmo, me tornei muito mais tranqüilo, muito mais seguro. Falei nisso às outras pessoas do grupo, ao Dr. Domingos, o psicanalista, e à Suzana, a psicóloga assistente dele. Foram ótimos comigo: acham que eu estou realmente bem, que tenho mesmo condições de segurar a minha barra sozinho. Enfim, ganhei alta — o que é uma coisa rara em terapia. Às vezes as pessoas ficam dez, quinze anos em tratamento. Isso me deixa ainda mais confiante.

No trabalho, tudo vai bem. Tenho um chefe excelente — Caloca tinha sido meu chefe na Pop, e me protegeu durante muito tempo. Ontem consegui terminar um trabalho que vinha fazendo desde março, um livrão de mais de 500 páginas sobre educação de bebês. Continuo fazendo as críticas de livros para Veja e, de vez em quando, algumas matérias para a Nova. Como meu salário aqui é de 52 mil, às vezes tiro 60/65 por mês. Dá para levar, apesar do Delfim Neto...

Agora que tudo está mais ou menos em ordem, quero começar a aprontar um novo livro. Estou transando com uma editora do Rio (a Nova Fronteira, que pertencia ao Carlos Lacerda) para publicá-lo. No momento, creio que é a melhor editora do Brasil. Acho que tudo vai dar certo e — quem sabe? — no começo do próximo ano talvez esteja com um livro novo à venda por aí. Insisto mais uma vez: gostaria profundamente que o senhor e a mãe pudessem vir. Por favor, vão pensando nisso desde agora. Vamos passear muito. Há lugares ótimos para conhecer.

Espero que estejam todos bem. Um beijo para a mãe, Cláudia e Márcia. Um abraço para o Felipe. Sei que o senhor não gosta de escrever cartas, mas se quisesse responder eu gostaria muito. Cuide bem de sua saúde.

Um grande abraço do seu filho

Caio
PS — Minha erva mate acabou completamente — tenho procurado em mil lugares e não encontro, O senhor podia me mandar um ou dois pacotes de Madrugada Amarga?

Caio Fernando Abreu



Paulo Braccini
enfim, é o que tem pra hoje...

27 comentários:

  1. Lindo, sem comentários.
    bjo.
    Ps: quanto ao tema dos gordinhos, confesso, sou gordófila!
    Descobri quando bati de cara num poste,por ficar me virando para olhar um gordelicio que passava.
    Hummmmm.
    bjo

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  2. Leio pouco o Caio. Um dia ainda paro para apreciá-lo.

    Ah, sobre o nick, mera coincidência. Mas quando lembrei, ri horrores e citei pra ti. Mas, amanhã estarei com outro, acho que vai ser PAUlo26. Hahahahahahaha.

    Bom dia e excelente fnds!

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  3. Paulo, meu amigo, quandoía lendo, logo percebi as escritas de Caio. Ele é único e a tristeza da carta era coisa dele. Amei! Lindíssimo!!!!

    Milhares de beijos

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  4. Eu tb leio pouco Caio...
    (na verdade, não curto muito)
    Mil besos

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  5. Putz.. eu adoro o Caio, Morangos Silvestres, A Dama da Noite... Por onde andará Dulce Veiga (este bem menos). Ah, a frase citada no meu blog, no cabeçalho é de uma das cartas dele. Abç!

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  6. Já tinha lido alguns trechos de Caio C. Mas não tive contato com sua obra ainda...
    boa indicação!

    Ps. Obrigado Paulo, pelo carinho nesses dias de dengo geral... hehehehe

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  7. Lindo, triste, verdadeiro....ele escreve como ninguem!
    Família...onde foi parar?
    Fim de semana iluminado.
    Bjkas

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  8. Eu ao Caio Fernando Abreu. Falei!
    Por que todos as pessoas lúcidas perdem a saúde mental? Eu estou perdendo a minha.
    Bjs

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  9. Paulo,

    Eis aí uma bela demonstração de como as coisas simples da vida são belíssimas. Que texto espetacular! É incrível como o ar intimista das palavras vai tomando conta da gente e, aos poucos, nos sentimos como parte da família dele.

    Achei isso aqui fantástico:

    "Eu acho que a gente não deve perder a curiosidade pelas coisas: há muitos lugares para serem vistos, muitas pessoas para serem conhecidas. Tudo isso estimula a gente, clareia a cabeça, refresca. Por que não?"

    Também penso assim. O mundo é gigante e, por mais que a gente viva, nunca vai conseguir ver tudo o que ele tem pra mostrar.

    Lindo post!

    Beijoca!

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  10. Emocionante... Tocou em várias feridas! Me fez me sentir tão... humano!

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  11. D, sabes quanto amo o Caio, ele é simplesmente fantástico (para mim ainda é), me identifiquei muito com alguns trechos dessa carta, aliás, acho que muitos se identificaram.
    Obs: me escreva
    Bjux

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  12. Não sei se gosto. Mas é bem narrado e profundo.
    Bj.

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  13. Experiências e atitudes que nos fazem refletir... dividir os sentimentos com outros...

    Seria ótimo se minha mente entendesse essa carta como um ensinamento!!!

    Adorei... fiquei curioso pra ler o livro!

    ***

    xD

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  14. Nada de fila grande. Eu sigo o Estatuto do Idoso. A senhora tem prioridade.

    Então vamos começar: Vira, xero, mordidas, lambidas, sucção, lambida e agora como.

    E aí, gostou do servicinho?

    Next!

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  15. Li atentamente, do começo ao fim...não é a toa que adoro Caio Fernando...ele em cartas nos prende por demais.
    E família é algo tão importante.

    Meu querido, quero agradecer o seu carinho por mim lá no Rabiscos, como é bom ter amigos especiais como você, como respondi lá, fofo é você, viu?

    Ah e aquela mordida de bocas é DILÍCIAAAAAAAA....rsrs...ai ai ai...rsrsrs

    Beijos e uma linda noite e um final de semana de muita paz.

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  16. Hj eu quase estrangulo uma velhinha lá no trampo. Bom não ligar, senão quem vai cair dura na esganadura será a senhora.

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  17. Passei aqui,masa vi que não psso te ler hoje.
    Acabei de postar e estou meia
    assim assim...to com saudade, dai fico meia lerda e chrona e ja vi que seu post é forte.Caio...
    Volto de dia ta bom?
    Ador esse:Em fim é o que tem pra hoje.Escreve um livro com esse titulo...vai ser perfeito.
    Bjins entre sonhos e delírios

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  18. realmente adoravel :), a e quanto ao teste realmente parece que todos somos iguais ksksksksk bjs

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  19. lendo a carta, lembrei da epoca que escrevia cartas.
    apesar de ser uma bee nova - 25 anos - e viver na era do e-mail, sms e afins, cheguei a trocar cartas com meus amigos por algum tempo. especialmente quando nos separamos e foi cada um pra um lado desse brasil. mas com a correria da vida de hoje, nem sms temos trocado mais...

    abraços
    voy

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  20. Ai, disculpe a vergonha Paulo,
    é que o dia que você postou eu ainda tava dodói, nem tinha lido, pardon...

    Agora já estou me sentindo mais importante! ha ha!

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  21. É uma carta quotidiana, me parece, mas se lermos com atenção, perceberemos grandes sentimentos aqui.

    Nunca li o Caio Fernando Abreu, mas acho que está na hora de começar, não é seu Paulo?

    Bem, já me senti muitas vezes como o pai do escritor, tipo "Já morri e ainda não me avisaram", mas ele diz uma coisa que esclarece bem do que se trata:

    "Às vezes nós nos vamos fechando dentro da nossa própria cabeça, e tudo começa a parecer muito mais difícil do que realmente é."

    Abraços, Paulo, e até a próxima.

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  22. muito bonita essa carta do Caio, quando li pensei que se tratava de vc paulo. Não esqueço mais desse cara

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  23. Lindo. Lembrou-me este poema que fiz para o meu filhinho no Natal passado.

    DOCE OLHAR DO INFINITO AMOR MAIOR!


    Para você



    Olhar amor



    Olhar alegria



    Olhar louvor



    Olhar energia



    Olhar coração



    Que pulsa demais



    Que vibra porque ama plenamente



    Sem julgar, sem preconceitos,



    Sem cobranças



    Hoje como ontem



    Longe destes céus



    Como é encantador olhar para você



    Olhar eterno



    Olhar magia



    Olhar ternura



    Para comungar a vida



    E o desejo doçura



    De dias mais radiantes de paz



    Alguém que o ama apaixonadamente



    Diz que valeu a pena



    Você ter estado nesta Terra



    Sob estes céus



    Falando de fé união paz amor



    Aquele olhar para você



    Saber que sempre que chega o Natal



    Sua presença é muito intensa



    Sinto a sua força criança



    Que me enche de esperança



    Para continuar o caminho



    Nunca desistir



    Aquele doce olhar



    Do infinito amor maior



    Que me descansa



    Nunca cansa
    Poema da Renata

    Beijos*
    Bom Dia, querido.
    Desculpa não comentar +++++

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  24. Oi Paulinho!!!
    Que grata surpresa chegar aqui e ter um trecho do livro Cartas do Caio, bem sabes que eu gosto muuuuito dele, e esse livro em especial, eu carrego na mochila eu uso como meu 'minuto de sabedoria', ja perdi as contas de quantas vezes ja o li.
    Caio é eterno e pena que essa nova geração ainda não descobriu o seu legado!

    Beijos, queridão!

    PS: Agora de volta ao lar, conseguirei ser mais assiduo.

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  25. Obrigado queridos amigos pela presença e registro por aqui ...

    ;-)

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  26. O Caio parece ser parte da gente, né, Paulo? Parece ser feito do que cada um tem de melhor...e isso é eterno, que bom!

    Lindo, adorei ler isso!

    Beijos, querido.

    ℓυηα

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  27. lindo adorei, confesso que chorei também tamanho o sentimentalismo .

    Não conhecia esse autor . Lindo demais.
    bj

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então! obrigado pela visita e apareça mais, sempre teremos emoções para partilhar.

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