segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

A minha fachada!




Toda a vida venho reclamando a prorrogação do prazo para terminar a minha fachada.
Não querem atender-me. Nem sei mais o que alegar.
Terminar da noite para o dia, não posso.
Mas também é aborrecido ficar sempre atrás de andaimes e caminhar para a morte antes de concluir-se a construção.
Ninguém se espantará se eu confessar que talvez não termine nunca a minha fachada.
Tenho adotado diferentes modelos.
Mas logo me aborreço e passo para outro.
O que ma atrapalha bastante são as discussões a meu respeito.
Perde-se muito tempo nisso.
Às vezes quero intervir, mas não vela a pena, pois quando discutem a minha fachada, já utilizo outra muito diferente, oposta mesmo às anteriores.
Tudo resultado de eu não ter ainda fachada própria.
Afinal, eu me pergunto: quando terminarei a minha?
Ou melhor, quando cairá a que recomecei?
Pois as minhas fachadas caem todas…
Talvez porque costumo aproveitar em cada uma o material das outras; talvez porque não se possa manter no espaço em que as levanto.
Até que tudo se resolva, vou tendo a fachada que me atribuem.
São assim várias e numerosas as minhas fachadas.
Muitas vezes se voltam contra mim, tapam-me, não me deixam quase respirar.
Outras vezes – isso é frequente – se despregam de mim e vão erguer-se longe, enquanto eu fico atrás me rindo.
Aí então, aproveito os momentos disponíveis para distrair-me.
Sinto-me livre e cresço mais.
E deixo os outros falarem mal da fachada anterior.
Tenho uma fachada na universidade,
outra nas rodas mundanas, outra no quarto do meu bem.
Trabalho agora num tipo ideal de fachada.
Permeável, sonora e elástica.
Mutável, segundo o olhar de quem a contempla.
E a luz da paisagem para qual se abre.
Especialmente projetada para servir de aparência a algum edifício invisível.
Insusceptível de ser reproduzida.
Mas não me peçam que a termine tão cedo. O material é fluido.
Vou trabalhando nela como posso, dia e noite.
Com certa demora, pois há sempre pequenos incidentes.
Por exemplo: meto um prego, ele perfura o Azul.
Tento fixar um tijolo, ele cai no Vazio.
Mas não desanimo. Minha paciência é grande.
Vão ver depois que esplêndida fachada vai ser a minha.

Aníbal Machado - A arte de viver e outras artes.

Bratz Elian
enfim! é o que tem pra hoje ...

10 comentários:

  1. Linda escolha do texto, pois é assim a arte de viver, nem se sabe se "a vida imita a arte ou a arte imita a vida".
    Nunca sabemos ao certo como somos de verdade, acho que o melhor de tudo é mesmo a flexibilidade, mudar sem medo, encarar cada momento como único!
    Abraços amigo querido!

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    1. Flexibilidade para entender e encarar as permanentes mudanças necessárias, eis o segredo para viver.

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  2. Um português muito bem cuidado. Gosto de ler assim, com a ortografia impecável. A ênclise no início das frases, como convém. Muito bom. :)

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    1. Gosto deste seu conhecimento profundo sobre nossa língua. Coisa rara nos dias de hoje. Eu, mesmo, não tenho tamanha percepção.

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  3. Cada pessoa, uma fachada. Cada pessoa acha cria uma fachada de nós. Cada pessoa várias fachadas, as vezes fechadas, as vezes inacabadas, as vezes inacabáveis ! Mas creio que sejam assim mesmo, como você disse, o material é fluído.

    Abraço !

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  4. :-)Belo texto! A vida é feitas com as nossas fachadas, umas mais seguras e intactas que outras com o efeito do tempo não perdoa, mais tarde ou mais cedo dá cabo delas.

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    1. cada dia a sua fachada. nós seguimos assim tb. até encontrarmos a mais compatível com o nosso SER verdadeiro.

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  5. Ai que 'horror' tenho uma dificuldade ENORME em interpretar tais textos poéticos, são tão subjetivos, mas como sempre serei sincero aqui com a minha ignorância sem temer no que possa pensar a meu respeito! Pra começar vou dizer o que entendi sobre "a minha fachada" a imagem superficial que mostramos ao mundo, a "fachada" que criamos convenientemente, mostrando apenas o que queremos que os outros enxerguem sobre nós! Xará se não for isso ignore,e me perdoe pela minha interpretação errônea, mas eu acho que o texto quis dizer isso mesmo , segundo a minha interpretação! srsrsrsrsr









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então! obrigado pela visita e apareça mais, sempre teremos emoções para partilhar.

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