quinta-feira, 24 de abril de 2014

A Luta



Há uma profunda diferença entre a luta para não morrer e a luta para viver. Os homens que lutam para não morrer conservam a sua dignidade, defendem-se ciosamente – todos: homens, mulheres, crianças – , com feroz obstinação. Os homens não dobravam a cerviz. Fugiam para as montanhas, para as florestas, viviam nas cavernas, lutavam como lobos contra os invasores. Lutavam para não morrer. Era uma luta nobre, digna, leal. As mulheres não lançavam o corpo no mercado negro para comprarem batom, meias de seda, cigarros ou pão. Sofriam a fome, mas não se vendiam. Não vendiam os seus homens ao inimigo. Antes queriam ver os próprios filhos morrer de fome do que venderem-se, que venderem os seus homens. Somente as prostitutas se vendiam ao inimigo. Os povos da Europa, antes da libertação, sofriam com maravilhosa dignidade. Lutavam de cabeça erguida. Lutavam para não morrer. E os homens, quando lutam para não morrer, agarram-se com a força do desespero a tudo o que constitui a parte viva, eterna, da vida humana, a essência, o elemento mais nobre e mais puro da vida: a dignidade, o orgulho, a liberdade da própria consciência. Lutam para salvar a alma. 
Mas depois da libertação os homens tiveram de lutar para viver. É uma coisa humilhante, horrível, é uma necessidade vergonhosa lutar para viver. Só para viver. Só para salvar a própria pele. Já não é a luta contra a escravidão, a luta pela liberdade, pela dignidade humana, pela honra. É a luta contra a fome, é a luta por um pedaço de pão, por um pouco de lume, por um farrapo para cobrir os filhos, por um pouco de palha onde estender o corpo. Quando os homens lutam para viver, tudo, até uma panela vazia, uma ponta de cigarro, uma casca de laranja, uma côdea de pão seco apanhado no lixo, um osso esburgado, tudo tem para eles um valor enorme, decisivo. Os homens são capazes de todas as velhacarias para viver; de todas as infâmias, de todos os crimes, para viver. Por um pedaço de pão, cada um de nós está pronto a vender a própria mulher, as filhas, a macular a própria mãe, a vender os irmãos e os amigos, a prostituir-se e a um outro homem. Está pronto a ajoelhar-se, a arrastar-se pelo chão, a lamber os sapatos de quem pode matar-lhe a fome, a dobrar a cerviz sob o chicote, a limpar, sorrindo, a face onde lhe escarraram. E tem um sorriso humilde, doce, um olhar cheio de uma esperança famélica, bestial, uma esperança espantosa. 



Curzio Malaparte . A Pele

Bratz Elian
enfim! é o que tem pra hoje...

28 comentários:

  1. Olá, Paulo. Teu texto é cruel, mas verdadeiro. Mas o que vejo nesses olhos não é esperança; é desespero.

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    1. Ana, o texto não é meu, é de Curzio Malaparte em A Pele. Sim, ele é verdadeiro e por isto mesmo não acho cruel ... Cruel talvez seja a realidade dos fatos, né?

      Beijão

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  2. Estou com esse "antes/depois da libertação", em dúvida. A que se refere?

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    1. Edu, o antes/depois se refere à idade moderna, à revolução industrial, ao capitalismo/socialismo e afins ... com o advento de tudo isto q, paradoxalmente, pregava a libertação, o q tivemos foi o novo paradigma: Lutar para viver em substituição ao lutar para não morrer. Percebo assim ...

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  3. Sensacional Paulo...infelizmente é uma visão tão brasileira!!! nosso povo vende a alma para sobreviver, não se tem mais a dignidade da luta. O "ter" vantagem sobre outros, prostituiu a alma brasileira...ainda bem que "somos poucos" mas ainda dizemos não a isso. abração.

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    1. Na minha percepção isto de aplica ao SER de um modo geral, mas aqui, na BRASUCA Tupiniquim temos sim, um requinte maior de safadeza, hipocrisia e outros "valores" tão em moda ...

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  4. Muito bom o texto! Penso que a vida é composta de ambas as lutas. Elas são necessárias, dependendo do momento que vivemos. São complementares...

    Abraços

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    1. A vida hoje, sim, é composta de ambas as lutas, mas com um enfoque maior para a luta para viver, com os "valores" [a]morais dos tempos modernos ...

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  5. Dedo (direto) na ferida, define! Uia tchê!

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    1. Dedo? uuuummmm ... de tchê então ... já sei ... vais enaltecer os dedos gauchescos tb ... rs

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    2. Não... nada disso... prefiro os mineiros. Os dedos - que fique claro... hahaha! Ótimo findi pro'cês!!! BjAAAs!!!

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  6. que lindo texto Mr. Paulo Roberto! realmente a luta para viver acaba senod indigna e nos reduz a simples predadores, a figura que me veio foi a dos zumbis em filmes, cuja unica missão é sair comendo cérebros , sem nenhum objetivo, sem sonhos, sem planos, sem ter contra o que lutar! vou ficar pensando neste texto por um tempo, com certeza!

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    1. Sim meu caro, principalmente sem VALORES!

      Obrigado pela visita e registro ...

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  7. A parte que as muljeres preferiam ver seus filhos morrerem de fome do que se vender é de um preconceito com as prostitutas que eu não entendo. É realmente mais degradante para uma mulher ver seus filhos definharem de fome do que ser puta?

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    1. Querido releia o texto e perceba q vc é q fez uma leitura inteiramente equivocado do mesmo ... ele fala da prostituição em outros tempos ... em outro contexto ... no contexto atual ele coloca desta forma: "Os homens são capazes de todas as velhacarias para viver; de todas as infâmias, de todos os crimes, para viver. Por um pedaço de pão, cada um de nós está pronto a vender a própria mulher, as filhas, a macular a própria mãe, a vender os irmãos e os amigos, a prostituir-se e a um outro homem."

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  8. a luta da sobrevivência, pela sobrevivência.

    dentrodabolh.blogspot.com

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    1. Obrigado pelo carinho da visita e pelo registro ... eu, fico aqui com minha luta por valores ...

      Beijão

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  9. Esse texto caiu como uma luva hoje, qdo.estou voltando de 9 dias em Cuba,onde fiz muitas reflexões sobre a condição humana com o q vi lá..segunda contarei tudo...beijinhos e saudades!

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  10. Além de tudo o que já foi comentado, eu diria que seria engraçado - não fosse trágico, como isso ainda é tão verdadeiro e como isso ainda acontece no meio corporativo, principalmente...

    Texto forte e muito bonito.

    Eu tenho um pé nos antigos, apesar de viver na tecnologia, gosto muito de escrever à mão, de canetas de tinta, de papel.... pena que as pessoas já não escrevem mais cartas né?! ;-)

    Abração!

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    1. Felizmente ainda temos nossos pés nas antigas querido ... ainda bem ... somos afortunados

      Beijão

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  11. Ótimo texto para reflexão....
    Viver é uma luta constante.
    Abraços!

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  12. Forte o texto! Lutamos por tudo na vida, né! Lutamos pra nascer, pra caminhar, pra crescer. Lutamos pra morrer. Bem que poderia ser mais fácil!

    Abração

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    1. pois então Adriano ... forte mas verdadeiro né? uma pena q seja assim ...

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  13. Infelizmente é verdade. Veja-se a título de exemplo o que se passou na segunda guerra mundial.

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então! obrigado pela visita e apareça mais, sempre teremos emoções para partilhar.

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