terça-feira, 16 de novembro de 2010

O Inimigo Secreto



O envelope não tinha nada de especial. Branco, retangular, seu nome e endereço datilografados corretamente do lado esquerdo, sem remetente. Guardou-o no bolso até a hora de dormir, quando, vestindo o pijama (azul, bolinhas brancas), lembrou. Abriu, então. E leu:

“Seu porco, talvez você pense que engana muita gente. Mas a mim você nunca enganou. Faz muito tempo que acompanho suas cachorradas. Hoje é só um primeiro contato. Para avisá-lo que estou de olho em você. Cordialmente, seu Inimigo Secreto”.A esposa ao lado notou a palidez. E ele sufocou um grito, como nos romances. Mas não era nada, disse, nada, talvez a carne de porco do jantar. Foi à cozinha tomar sal de frutas. Leu de novo e quebrou o copo sem querer. Voltou para o quarto, apagou a luz e, no escuro, fumou quatro cigarros antes de conseguir dormir.

II
Dois dias depois veio o segundo. Examinando a correspondência do dia localizou o envelope branco, retangular, nome e endereço datilografados no lado esquerdo, sem remetente. Pediu um café à secretária, acendeu um cigarro e leu: “Tenho pensado muito em sua mãe. Não sei se você está lembrado: quando ela teve o terceiro enfarte e ficou inutilizada você não hesitou em mandá-la para aquele asilo. Ela não podia falar direito, mas conseguiu pedir que não a enviasse para lá. Queria morrer em casa. Mas você não suporta a doença e a morte a seu lado (embora elas estejam dentro de você). Então mandou-a para o asilo e ela morreu uma semana depois. Por sua culpa. Cordialmente, seu Inimigo Secreto”.

Abriu a terceira gaveta da escrivaninha e colocou-o junto com o primeiro. Pediu outro café, acendeu outro cigarro. Suspendeu a reunião daquele dia. Parado na janela, fumando sem parar, olhava a cidade e pensava coisas assim: “Mas era um asilo ótimo, mandei construir um túmulo todo de mármore, teve mais de dez coroas de flores, ela já estava mesmo muito velha”.

III
Alguns dias depois, outro. Com o tempo, começou a se estabelecer um ritmo. Chegavam às terças e quintas, invariavelmente. O terceiro, que ele abriu com dedos trêmulos, dizia:
“Você lembra da Clélia? Tinha só dezesseis anos quando você a empregou como secretária. Cabelo claro, fino, olhos assustados. Logo vieram as caronas até a casa em Sarandi, os jantares à luz de velas, depois os hoteizinhos em Ipanema, um pequeno apartamento no centro e a gravidez. Ela era corajosa, queria ter a criança, não se importava de ser mãe solteira. Você teve medo, não podia se comprometer. Semana que vem faz dois anos que ela morreu na mesa de aborto”.

IV
Fumava cada vez mais, sobretudo às terças e quintas. As cartas se acumulavam na terceira gaveta da escrivaninha:
“É o Hélio? Lembra do Hélio, seu ex-sócio? Desde que você conseguiu a maior parte das ações com aquele golpe sujo e o reduziu a nada dentro da companhia, ele começou a beber, tentou o suicídio e esteve internado três vezes numa clínica psiquiátrica.”
 “Então você se sentiu orgulhoso de si mesmo no jantar que os funcionários lhe ofereceram no sábado passado? Talvez não se sentisse tanto se pudesse ver no espelho a sua barriga gorda e os seus olhinhos de cobra no decote de dona Leda. Depois que você se foi, ela riu durante meia hora e foi para a cama com o Jorginho do departamento de compras.”
“E o fracasso sexual com sua mulher no domingo? Será que minhas cartas o têm perturbado tanto? Ou será apenas que você está ficando velho e brocha?”

V
Com cuidado, a mulher insinuou que devia procurar um psiquiatra. Ele desconversou, falou no tempo e convidou-a para ir ao cinema. A terceira gaveta transbordava. Além das terças e quintas, depois de um mês as cartas passaram a vir também aos sábados. E, depois de dois meses, todos os dias. Tentava controlar-se, pensou em não abrir mais os envelopes. Chegou a rasgar um deles e jogar os pedaços no cesto de papéis. Depois viu-se de quatro, juntando pedacinhos como num quebra-cabeça, para decifrar: “Você tem observado seu filho Luiz Carlos? Já reparou na maneira de ele cruzar as pernas? E o que me diz do jeito como penteia o cabelo? Não é exatamente o que se poderia chamar um tipo viril. Parece que faz questão de cada vez mais parecer-se com sua mulher. Talvez tenha nojo de parecer-se com você”.

VI
“Há quanto tempo você não tem um bom orgasmo?”
“E aquele seu pesadelo, tem voltado? Você está completamente nu sobre uma plataforma no meio da praça. A multidão em volta ri das suas banhas, da sua bunda mole, obrigam-no a dançar com um colar de flores no pescoço e jogam-lhe ovos e tomates podres.” 
“Uma farsa, essa sua vida, O seu casamento, a sua casa em Torres, a sua profissão — uma farsa. E o pior é que você já não consegue nem fingir que acredita nela.”
“Pergunte à sua mulher sobre um certo Antônio Carlos. E, se ela lhe disser que a mancha roxa no seio foi uma batida, não acredite.”
“Quando criança você não queria ser marinheiro?”

VII
Suportou seis meses. Uma tarde, pediu à secretária um envelope branco, colocou papel na máquina e escreveu: “Seu verme, ao receber esta carta amanhã, reconhecerá que venci. Ao chegar em casa, apanhará o revólver na mesinha-de-cabeceira e disparará um tiro contra o céu da boca”. Acendeu um cigarro. Depois bateu devagar, letra por letra:“Cordialmente, seu Inimigo Secreto”. Datilografou o próprio nome e endereço na parte esquerda do envelope, sem remetente. Chamou a secretária e pediu que colocasse no correio. Como vinha fazendo nos últimos seis meses...

Caio Fernando Abreu

Paulo Braccini
enfim! é o que tem pra hoje...

24 comentários:

  1. Primeiro uma aflição, depois pena e, no final, um arrepio. Foram os sentimentos que vieram à tona.
    Cheguei a pensar que era o 'coisa ruim', mas não, era o subsconsciente se unindo à culpa.
    Parabéns ao autor. Tem tudo pra escrever um bom livro.

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  2. É as coisas mal resolvidas na vida nos sabotam.Pelo menos o inimigo era declarado!
    Brilhante!

    bjo

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  3. Querido amigo, isso é que é insatisfação, loucura, culpa e arrependimento do que ele fez a vida inteira. Remorso é um dos piores sentimentos, e é muito difícil lidar com ele. Esse sujeito só vai ficar bem com ele mesmo depois de morto. Beijocas

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  4. às vezes a gente não aguenta as próprias misérias.

    na maioria das vezes é assim, pq ninguém dá a mínima pras nossas misérias.

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  5. É nossa consciência que nos julga.
    Coisas de Caio Fernando Abreu. Fantástico.
    :)

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  6. Amo Caio,um dos grandes escritores da nossa literatura.Você leu "Aqueles dois"?Também uma obra prima?
    Obrigado por compartilhar.
    p.s-Leia as Cartas do Caio-fantásticas.
    Beijo,James.

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  7. realmente somos nossos piores inimigos , os unicos capazes de nos tornar vencedores ou perdedores .

    obs: fiquei aflito com essa história que cara terrivel , nossa realmente ..sem palavras .
    parabens ao autor !

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  8. Ainda bem que sou seu amigo declarado.
    Chegou o bom momento, ou o grande dia!
    O sorteio estar lançado e você por me seguir e ler-me, convido-lhe a participar. Leia o regulamento e respondas as perguntas. São 20 livros que serão sorteados.
    Vamos lá!
    Sua participação é o meu grande presente.
    JORNAL AFOGANDO O GANSO
    http://afogandooganso.blogspot.com

    Bjs.
    Guará Matos,
    @GuararemaMatos

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  9. Caio,Caio...ele sempre me surpreende! Adoro!

    bjos moço!

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  10. Percebi de cara que fora ele mesmo que havia escrito todos os seus trajetos destino. Um drama de consciência ele estava vivendo. Isso é horrível para um ser humano perturbado psicologicamente.
    Olha que tem muitas pessoas com esses pensamentos.
    Abraço

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  11. Nem a pérola estranha que habita na gente, nem o limo que toca a parede do peito, podem qualquer razão sobre a nossa razão.
    Somos realmente nosso pior inimigo!

    Tácito

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  12. ah, Caio... sempre ele! Texto fantástico!

    Nós mesmos.. nossos maiores aliados e nossos piores inimigos.. Me sinto fascinado por essa dualidade... faz parte do ser humano, da busca :)

    Obrigado por compartilhar conosco, Bratz :o)

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  13. Belo conto do Caio, que tive o imenso prazer em conhecer pessoalmente... era muito belo, o rapaz...
    Beijo,
    Ricardo
    aguieiras2002@yahoo.com.br
    http://dividindoatubaina.wordpress.com

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  14. gente... caio fernando abreu precisa sempre ser revisitado

    quem não adora?
    beijos

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  15. Uau! Ninguém tem dom maior para ser carrasco do que nós mesmos. Fato.

    Adorei o texto, os esbarrões contra os fantasmas pessoais, toda a atmosfera de culpa. Coisa que sufoca, perturba.

    Beijos, querido.

    ℓυηα

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  16. Uma mulher aqui no interior da bahia, rendeu os coveiros com uma faca, e tentou obrigá-los e desenterra o noivo dela que ela o iria ressuscitar. Se ela assim o fizesse, eu a levaria para fazer o mesmo com Caio F. De certeza.

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  17. hmm. pra se pensar!

    bjo Braccini
    :)

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  18. Faço minhas suas palavras, lá no blog, "Caio será eternamente Caio ... nada mais a dizer ...". Apenas acrescentando, sempre quando se trata de um escritor como ele, há algo a mais a dizer, por isso continuo: adoro a forma como ele se expressa, os temas que recorre pra falar de si e do mundo, enfim, um escritor apaixonante mesmo. Que bom que vc também fez esse resgate. Parabéns!!! leia a biografia dele, é ótima. Abração! P.S. Sobre as eleições: bem, melhor deixar pra lá, né?

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  19. Caio tinha uma capacidade impresisonanete de nos prender e nos encantar. Fiquei apaixonado pela hemorragia das idéias em Morangos Mofados. Adorei. Linda semana queridão. Abraços.

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  20. Paulo

    Magnífico texto. Acho que todos os seres humanos temos esses dois lados dentro de nós: a Luz e a Sombra. Tratamos é de esconder a Sombra. Mas faz parte de nós, é assim que evoluímos e aprendemos. E limpamos karma.

    Abraço

    António

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  21. Li duas vezes seguidas e continuo sem palavras. Simplesmente... FANTÁSTICO!

    Definitiva e literalmente...

    A culpa mata!

    Se cuida, Paulo!

    Abraço.

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  22. Às vezes passo dias pensando nas bofetadas que recebo do Caio. Ou nos carinhos recebidos. Chorar e rir com ele é, pelo menos pra mim, muito freqüente. É o tipo de texto que não dá pra passar despercebido, não consigo a ele ser apático. Ontem li a crônica "Carlos chega ao céu" (livro "Pequenas Epifanias"), que fala sobre a morte de Carlos Drummond... e é de rir pela beleza e chorar pelo sentimento provocado.

    O texto por você postado eu não conhecia este texto. E é fantástico... um dia terei o orgulho de dizer que li a obra dele toda!

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então! obrigado pela visita e apareça mais, sempre teremos emoções para partilhar.

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