sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Idéia


A idéia de viajar nauseia-me.
Já vi tudo que nunca tinha visto.
Já vi tudo que ainda não vi.
O tédio do constantemente novo, o tédio de descobrir, sob a falsa diferença das coisas e das idéias, a perene identidade de tudo, a semelhança absoluta entre a mesquita, o templo e a igreja, a igualdade da cabana e do castelo, o mesmo corpo estrutural a ser rei vestido e selvagem nu, a eterna concordância da vida consigo mesma, a estagnação de tudo que vivo só de mexer-se está passando.
Paisagens são repetições.
Numa simples viagem de comboio divido-me inútil e angustiadamente entre a inatenção à paisagem e a inatenção ao livro que me entreteria se eu fosse outro.
Tenho da vida uma náusea vaga, e o movimento acentua-me.
Só não há tédio nas paisagens que não existem, nos livros que nunca lerei.
A vida, para mim, é uma sonolência que não chega ao cérebro.
Esse conservo eu livre para que nele possa ser triste.
Ah, viajem os que não existem!
Para quem não é nada, como um rio, o correr deve ser vida.
Mas aos que pensam e sentem, aos que estão despertos, a horrorosa histeria dos comboios, dos automóveis, dos navios não os deixa dormir nem acordar.
De qualquer viagem, ainda que pequeno regresso como de um sono cheio de sonhos - uma confusão tórpida, com as sensações coladas umas às outras, bêbado do que vi.
Para o repouso falta-me a saúde da alma.
Para o movimento falta-me qualquer coisa que há entre a alma e o corpo; negam-se-me, não os movimentos, mas o desejo de os ter.
Muita vez me tem sucedido querer atravessar o rio, estes dez minutos do Terreiro do Paço a Cacilhas.
E quase sempre tive como que a timidez de tanta gente, de mim mesmo e do meu propósito.
Uma ou outra vez tenho ido, sempre opresso, sempre pondo somente o pé em terra de quando estou de volta.
Quando se sente de mais, o Tejo é Atlântico sem número, e Cacilhas outro continente, ou até outro universo.
Fernando Pessoa
Paulo Braccini
enfim, é o que tem pra hoje...

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